sexta-feira, 27 de abril de 2012

A repressão contra a Letra da musica Cálice

Letra da música Cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
(refrão)
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
(refrão)
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
(refrão)
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguem me esqueça
Estudo sobre a música
Cálice, feita em parceria com Gilberto Gil, é um exemplo de música alegórica a respeito da censura e das dificuldades de se compor sob ela, podendo ser encarada como uma metalinguagem da palavra expropriada, pois trata da expressão contida, no limite levando ao silêncio. Na canção, a palavra cálice é repetida freqüentemente, adotando o sentido e a sonoridade de cale-se, representação da repressão sobre a produção cultural – a manifestação artística calada arbitrariamente pelo Estado.
Na música, o silêncio imposto torna-se, progressivamente, mais violento a cada estrofe, como uma censura que vai se institucionalizando, profissionalizando e tornando-se mais forte. Na primeira estrofe há o verso: “mesmo calada a boca resta o peito”. Na terceira: “mesmo calado o peito resta a cuca”. E, por fim, na última, a própria cabeça é perdida, e sem ela há o silêncio total: “quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder seu juízo”. Nesse trecho, a boca pode ser encarada como simbolizando a capacidade de comunicação; o peito, a capacidade de sentir e a cabeça a capacidade de pensar, ou seja, gradualmente extinguiram-se as próprias faculdades humanas, a impossibilidade de manifestação do pensamento por meio da palavra anula o próprio indivíduo, decapita o artista.
A composição, gravada em 1973, parece dialogar diretamente com o governo Médici, que usou, além da censura, a tortura e a morte para calar os chamados subversivos, ou seja, aqueles que ousavam falar. O verso “silêncio na cidade não se escuta” mostra que existiam muitas vozes querendo se expressar, porém a situação as obrigava a não se pronunciar, a palavra não saía da garganta, pois existia “tanta mentira, tanta força bruta”, ou seja, a ameaça explícita e velada de uso da violência contra os opositores abafou as vozes das cidades.
A violência volta a se relacionar com o silêncio nos versos “como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado”. Acordar calado é difícil, mas necessário, pois se não se cala, corre-se o risco da danação noturna, isto é, durante a noite realizavam-se muitas das prisões políticas, longe dos olhos dos “cidadãos de bem”, podendo culminar em tortura e até em morte, encaradas, nessa análise, como representadas pelo “grito desumano”, o grito daqueles que perderam a humanidade pelas mãos dos torturadores, mas que no sacrifício – assim como nos sofrimentos de Jesus Cristo na cruz, tema sugerido pela repetição das palavras pai, vinho, sangue e cálice – se fazem ouvir.
Na quarta e na quinta estrofes é possível interpretar o sentido dos versos como uma tentativa do autor mostrar que, apesar da “palavra presa na garganta”, há a possibilidade de resistência. “De muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta” é a imagem de um Estado gigantesco, invasor dos âmbitos privados, crescendo ainda mais, gerando sua própria contradição, a faca que de tanto cortar perde sua utilidade. Enquanto o quarteto “esse pileque homérico do mundo / de que adianta ter boa vontade / mesmo calado o peito resta a cuca / dos bêbados do centro da cidade” evidencia um mundo ao avesso – a ditadura que destruiu a democracia em construção dos anos 1950 e 1960 -, um mundo bêbado, fora de si, onde apenas a vontade ou a idéia de mudar não bastam e onde os que pensam, aqueles que ainda têm cuca, estão bêbados com o regime, isto é, as classes médias dos centros das cidades iludidas com o crescimento econômico, classes que emperram a mudança. Todavia elas perderão a cabeça, segundo a vontade do autor, na estrofe seguinte.
Quando se diz “quero perder de vez tua cabeça” refere-se a esse teu, um interlocutor elíptico, podendo ser visto como esta cabeça dos centros das cidades e dos donos do poder, Chico pode estar referindo-se a essas classes médias que têm papel fundamental na manutenção do regime e contribuem significativamente com a formação, consolidação e reprodução de valores favoráveis ou geradores da crença sobre este sistema político. Então perder tua cabeça adquire um valor de negação da ilusão, dos valores e da crença no status-quo, “minha cabeça perder teu juízo”.
Nos dois primeiros versos da última estrofe parece existir uma chama de esperança ou a tentativa de retirar o véu ideológico desse governo que provoca o silêncio para conter a reação. “Talvez o mundo não seja pequeno” procura quebrar certa visão lacônica e imediatista – geradora de conformismo, própria das camadas sociais beneficiadas pelo “milagre econômico” – e mostrar a vastidão do mundo, a existência de inúmeras experiências políticas diferentes, outros modelos de regime, formas diferentes de se organizar um país e múltiplas soluções para os mesmos problemas, que não necessariamente passem pela violência. No verso seguinte, “nem seja a vida um fato consumado”, existe a tentativa de quebrar o conformismo e a apatia e mostrar que as coisas são mutáveis, que a vida dos homens é um processo, é história, não está escrita e não é monolítica, sendo passível, portanto, de uma ação transformadora.
O mundo que se espera com a transformação é aquele que permita “inventar o próprio pecado” e “morrer pelo próprio veneno”, ou seja, permitir ao povo realizar-se, governar-se, tentar e pagar pelo próprio erro, como nos regimes democráticos, e não impor a verdade através de um Estado centralizador.
A raiva e a vontade de fugir desse governo opressor aparecem já na primeira estrofe em “de que me serve ser filho da santa / melhor seria se filho da outra”, pois as rimas são organizadas de forma a induzir o leitor a construir um palavrão. As palavras finais dos versos anteriores são: labuta, peito, escuta, santa, logo em seguida aparece outra, soando estranha ao ouvido.
Uma possibilidade para se entender esta agressividade é a censura sistemática da obra de Chico Buarque, principalmente no governo Médici. Porém, é possível perceber na canção que o foco não está composição musical, mas possui um caráter mais amplo.
É difícil separar, mesmo um pouco distante historicamente, o que foi incentivado pela censura e o que foi impossibilitado, contudo é passível de reflexão o fato de que, principalmente a partir dos anos 1950, o Brasil sofreu um momento de efervescência cultural que durou, pelo menos, até meados dos anos 1970. Então, a censura, por si só, não explica o surgimento de grandes compositores populares sob a ditadura militar, e buscar nesse instrumento de um governo a resposta para manifestações artísticas profícuas do período é no mínimo especular com a História.
O que está em jogo quando se fala em censura é a relação estabelecida entre o público e a coisa pública, ou seja, aquilo que deveria ser de acesso geral, pois diz respeito à própria sociedade, sua organização e sua reprodução, contra interesses particularistas, que estabelecem seus domínios com a apropriação do pertencente à coletividade. Dizendo respeito tanto a conteúdos – artísticos, culturais, jornalísticos, de transparência (só para usar uma palavra da moda) - como a direitos e deveres estabelecidos em conjunto (não em um sentido conservador, de ordem, mas de reconhecimento das desigualdades e da busca de uma saída para elas, ou os velhos vocábulos: universalização, acesso, distribuição, equidade).

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